14.10.08

os pilares

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«(...) A verdade é que as entrevistas, as declarações à saída disto ou daquilo, as conferências de Imprensa, os press release, os comunicados, obedecem a modelos canónicos que asseguram há longos anos a seriedade da Imprensa e a segurança das instituições.

(...)

É de muito mau gosto e revela um espírito malformado procurar explicitar certas expressões consagradas. Os leitores sabem o que elas significam e o jornalista não deve passar um atestado de menoridade à inteligência dos leitores. Só jornalistas associais, inadaptados, anarquistas, bolcheviques e congéneres não respeitam as convenções linguísticas estabelecidas. Toda a gente sabe que quando um político diz que 'vai ser nomeada uma Comissão de Inquérito' isso significa 'o assunto vai ser abafado'. É inoportuno e manifesta enorme falta de experiência e de educação perguntar-lhe: 'Isso significa que o assunto vai ser abafado?' Se tal sucedesse o político deveria responder-lhe: 'Não faço comentários', que significa, como toda a gente sabe, 'Acertou em cheio!' Não deveria todavia o jornalista, sob pena de ficar o resto da vida a redigir e Necrologia, insistir: 'Isso significa que acertei em cheio?' Do mesmo modo, quando um político diz que 'não está agarrado ao lugar', apesar de toda a gente saber que isso quer dizer 'daqui não saio, daqui ninguém me tira!', não é conveniente o jornalista perguntar-lhe mais nada sobre o assunto que eventualmente possa forçar o homem a expressar melhor o seu pensamento.

E o mesmo em relação a outros ditos de uso corrente em entrevistas, conferências de Imprensa e declarações mais ou menos públicas. Toda a gente sabe que 'não confirmo nem desminto' significa 'como é que este tipo soube?'; que 'o assunto está a ser estudado' significa 'não faço a menor ideia do que se trata'; que 'ganhe o melhor' significa 'precisamos de ganhar, nem que tenhamos que oferecer um casaco de peles à mulher do árbitro'; que 'o povo português, etc.' significa 'votem em mim'; que 'o senhor director não está' significa 'o senhor director está mas não está para o aturar'; que 'os altos interesses nacionais' significa 'convém-me que'; que 'reduzir o peso do sector público' significa 'passar a patacos as EP's que dão lucro e fazer os contribuintes pagar os prejuízos das outras'; que 'competitividade' significa 'salários baixos'; que 'flexibilidade das leis laborais' significa 'despedimentos fáceis'; que 'competência' significa 'é do meu partido'; que 'o árbitro roubou-nos um penalti' significa 'perdemos porque jogamos pior'; que 'grande arbitragem' significa 'fomos benefeciados pelo árbitro'; que 'estou muito contente por vir cantar a Lisboa' significa 'saquei uma boa maquia a estes pategos'; que 'o Porto é a capital do trabalho' significa 'preciso dos votos daqueles parolos'; que não tenho nada a declarar' significa 'é tudo verdade'; que 'segundo fontes geralmente bem informadas' significa 'disse-me um chofer de táxi'; que 'observadores são de opinião que' significa 'foi-me encomendado que espalhasse que'; que 'isto é um off the record' significa 'contem tudo mas não digam que fui eu que disse'; e por aí adiante.

As convenções linguísticas dos homens públicos e dos jornalistas são pilares sobre que assentam a segurança da sociedade democrática e a liberdade de Imprensa. Os leitores, os telespectadores, os ouvintes da rádio, dominam um complexo código cifrado de comunicação que os jornalistas devem respeitar, sob pena de deverem procurar emprego a vender andares ou a legalizar carros de emigrantes em qualquer agência fora do tempo e do espaço. (...)»


«Breve tratado do saber viver para as novas gerações de jornalistas»
Manuel António Pina
(JN - 12.12.87)

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